Picasso - excerto do livro

Quando me mostraram as águas-furtadas onde iria viver durante aquele período, fiquei maravilhada. Era uma residência de estudantes e os alunos de pintura e escultura estavam todos alojados no último piso, pois os quartos eram maiores e tinham mais luz por causa das clarabóias que existiam no telhado. Os quartos funcionavam como estúdios e estas características ajudavam muito.
Logo nesse momento achei que estava a iniciar um período mágico da minha vida, mas não poderia supor quão mágico…!
Era tudo novo: as ruas, a língua, que falava com alguma dificuldade, a comida, as pessoas… No primeiro pequeno-almoço, tomado na residência, conheci dois colegas de curso: Marianne, francesa do Sul, e Peter, um inglês muito louro e muito introvertido. Fomos juntos para a primeira aula, numa solidariedade assustada.
Não consigo relembrar exactamente o que se passou nesse dia, tenho ideia de que me atordoou. Mas tudo se apagou quando me sentei diante do cavalete. Teríamos de ir pintando uma tela em paralelo às produzidas nas aulas, e eu via aquela imensidão branca à minha frente e sentia-me igualmente em branco. O que poderia eu pintar?
– Espantou-te?!
Dei um salto com o susto e desequilibrei-me. Não estava mais ninguém no quarto, mas eu tinha a certeza de ter ouvido uma frase.
– Espantou-te terem aceite a tua candidatura? Mas vives em que mundo?
Fiquei sem acção. Do nada surgira a figura de um homem que me era familiar, demasiado familiar… Vestido com uma long sleeve às riscas, meio careca, cabelo já grisalho, muito curto, com um olhar vivo e profundo.
– Fiz-te uma pergunta – insistiu, enquanto remexia nos trabalhos que trouxera comigo para Paris. – Já percebi que me vais dar trabalho.
– Quem é o senhor?
– Trata-me por tu, Teresa, não tenho paciência para formalismos. Não sabes quem eu sou?
Eu ia responder que não, mas eu sabia quem ele era. O único problema é que também sabia que ele morrera em 1973 e, como estávamos em 2007, seria bastante estranho responder o que quer que fosse.
– Devo avisar-te que, nesta condição em que me encontro, oiço quase tudo o que pensas, o que vai ser bastante aborrecido, calculo. Mas sim, sou Pablo Picasso. E sim, morri há uns anitos. Coisas que acontecem.
“Coisas que acontecem”, repeti para mim mesma… Ele mantinha-se a folhear os meus desenhos, os esboços.
– Tens dezasseis anos, certo? E chamas-te Teresa, não é? Que engraçado! Uma das minhas paixões chamava-se Marie-Thérèse… Era pouco mais velha do que tu quando a conheci… Mas isso agora não interessa. Espantou-te terem aceite a tua candidatura? – repetiu, agora já sem qualquer intenção de me provocar.
– Sim… e não.
– Queres explicar-te? Ou leio directamente do teu cérebro? É mais inteligente verbalizar o que pensas, e não me dás tanto trabalho.
– A pintura é tudo para mim – disse eu, estranhando ser capaz de dizer uma coisa tão forte como aquela.
– Então, estás no bom caminho. O teu trabalho é excelente. O teu caminho é a pintura. O problema reside nessa tua cabeça desarrumada. Tanto pensas que estás a fazer algo muito bom como pensas que, se calhar, não vales nada…
– É isso mesmo – concordei.
– Quanto à dúvida que está a atrapalhar a nossa conversa, devo dizer-te que adoro esta minha condição de fantasma, ou o que lhe quiseres chamar.
Eu não comentei, estava muito confusa.

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